Lágrimas na chuva
- Hernestro Vincent
- 28 de dez. de 2021
- 8 min de leitura
Somos guiados pela nossa imaginação.
Não deixem que cortem minhas asas e
que meus sonhos se dissipem com a aurora de um novo dia.”
Altieri Delmondes

Às vezes me pergunto onde tudo isso começou e mesmo após horas de reflexão não tenho a resposta. Deveria me apresentar agora, mas esperarei um momento mais oportuno, afinal tenho que me focar em outros acontecimentos um tanto mais interessantes que a identidade desse contador de histórias. Não sei ao certo em que ano estamos e creio que seja dificil encontrar alguém que ainda carregue consigo essa informação. A última vez que vi um calendário (um tanto rudimentar, diga-se de passagem), ele continha marcações que não pude identificar, portanto foi a mesma coisa que não visualiza-lo. A poluição alcançou niveis jamais imaginados antes e os grandes centros urbanos são um amontoado de concreto pichado e desordem. Nos campos estão refugiados (ou melhor, confortavelmente alocados) aqueles que chamamos de “Afortunados”; pessoas que por fazerem parte da primeira elite conseguiram preservar terras boas aonde ainda é possível conseguir agua potavel em abundância e campos de plantio. Juntamente com os Afortunados estão aqueles que ganharam o “direito” de subexistir com eles para prestarem os serviços mais variados: os “Seduzidos”. O restante do mundo é formado por toda a sorte de pessoas, espalhadas desordenadamente pelas cidades que outrora eram lar de todos. Os Afortunados mandam e desmandam em todas as cidades desordenadas distribuindo poucas “rações” para aqueles que de certa forma, seguem suas vidas sem interferirem nos negócios da “Ordem” (grupo formado pelos Afortunados para dominar as cidades desordenadas). Assim seguem os dias, sujos para muitos e limpidos e exuberantes para poucos. Nesse momento meu caro leitor deve estar se perguntando em qual grupo se encaixa esse humilde escritor... Pois bem, em nenhum dos descritos acima! Faço parte de uma minuria nômade que vive se mudando, evitando assim, ser encontrado e submetido a testes e experimentos da Ordem. Ando por todas as partes e confesso que já estive nas terras dos Afortunados também, desfrutando de sua inospitalidade. Uma outra hora conto sobre isso. O fato é que em uma dessas andanças encontrei a figura central desse meu conto. A chuva caia lenta e silenciosamente naquela noite de... deixa pra lá. Era uma noite sem lua, onde as ruas se iluminavam fracamente por conta de pouquissimas luzes de postes semi-caídos. É fato que quanto menos luz há nas cidades, mais criaturas terríveis podem surgir das sombras, e também se sabe que não é aconselhavel andar por aí nessas horas e muito menos durante a chuva! Infelizmente alguém não ouviu e por esse motivo Selena estava correndo pelas ruas imundas da cidade de São Bastim atrás de sua filha. Vivian! Vivian! - gritava Selena enquanto corria por toda a cidade. - Vivian, meu amor, não brinca com a mamãe! O grande problema de se gritar na noite escura em meio o caos é que, nem sempre seus gritos serão ouvidos apenas por quem você está procurando. As criaturas da noite possuem uma boa audição e um olfato aguçado que sente o medo de suas futuras vitimas. Nesse momento a chuva havia aumentado, o que dificultava a visão de Selena e seu desespero aumentava a cada segundo que passava sem avistar a filha. Correndo sem muita coordenação chegara a um beco. Um beco sem saída. Vivian, Vivian... Vivian... Vi... vi... - a voz foi ficando fraca enquanto caia de joelhos. Com a mão na barriga se deu conta que estava sangrando. O sangue misturado a agua da chuva se tornava ralo e menos brilhante escorrendo pela sarjeta de encontro a podridão do esgoto a céu aberto. A camiseta ensopada grudava no ferimento em sua barriga. Ahhhhhh...... - seu grito ecoou na noite escura. Mamãe!? - disse em voz baixa num outro canto Vivian, que acabara de ouvir o grito lancinante da mãe. Por um momento a garota de oito anos se esqueceu o porquê de sua fuga naquela noite fria e correu de encontro ao som aterrorizante de dor que acabara de ouvir. Foi ao encontro da morte. Estava bem próximo ao beco e chegou em questão de segundos, vendo a mãe ajoelhada no chão, enquanto uma figura sombria estava em pé ao lado dela com uma adaga na mão. Adaga essa, que pingava sangue. O sangue de sua mãe. Mamãeeeee!!!!!!!!!!!!!!!!1 – gritou Vivian em desespero, ao passo que a criatura virou-se pra ela. Hum! Que delícia, carne fresca e macia se aproxima! - disse, em uma voz quase irreconhecivel, a criatura. A criatura em questão era chamada de “Pantanoso”, pois seriam mutações genéticas causadas pelo cruzamento de alguma criatura que vivia nos pantanos com o homem. Era alta, com braços longos que quase tocavam o chão e cobertos de uma pele escamosa e dura. Usava roupas como os homens comuns e tinham preferência por utilizar capas de chuva. Seu rosto era deformado e repleto de feridas. Não era possível ver de longe os olhos da criatura, que se misturava com a pele deformada, e os dentes eram enormes e saiam disforme pela boca. Tinham gosto por carne humana. Geralmente apunhalavam a vítima e a deixavam sangrar até a morte, quando então, cortavam seus corpos e levavam para suas casas no subsolo, onde cozinhavam e consumiam. Em média um corpo humano alimenta esses seres durante dois dias, quando eram obrigados a sairem na caçada novamente. Sem pensar muito a criatura avançou sobre a garotinha. Fi...l...ha... - as forças de Selena iam embora junto com o sangue que escorria na sarjeta. Mãe!!!!!!! De forma improvável garras dilaceram a criatura, cortando em pedaços seu abdomem. Junto com o som angustiante (e ao mesmo tempo de alívio) do corpo da criatura sendo cortado, um bater de asas molhadas invade o ambiente. De olhos fechados, encolhida no chão, a pequena Vivian reluta em olhar o que está acontecendo. Por favor... não me machuque... - balbuciou chorosa sem abrir os olhos. Eu jamais machucaria um anjo! - retrucou uma voz forte e ao mesmo tempo carregada de uma doçura própria. Uma voz que inspirava proteção e carinho, sem deixar de demonstrar uma força capaz de qualquer coisa em sua defesa. Abrindo os olhos, Vivian enxerga seu salvador. Aparentemente um rapaz com seus vinte e poucos anos, com uma mascara de contenção de poluição no rosto, olhos brancos penetrantes e cabelos grossos cobrindo parcialmente seu rosto. Um rapaz com asas negras e garras afiadas fitando uma garotinha amedrontada e ao mesmo tempo agradecida ao ver os pedaços de seu agressor espalhados pelo chão. Ele não irá mais te fazer mal. Mamãe? - gritou a garotinha ao correr até onde o corpo pálido de sua mãe jazia quase sem vida. Fi...l...h...a – quase sem fôlego, Selena tentava falar com sua filha. - não fu...ja m...ais d..e.. c...a..s... - a frase foi interrompida por um último suspiro. Mãe? - as lágrimas aumentaram e logo Vivian estava convulsionando, aos prantos, agarrada ao corpo de sua mãe. A figura estranha que havia salvado Vivian apenas observava a cena, como se conhecesse a dor da perda. Seus olhos Brancos aparentemente inexpressivos acompanhavam a dor da garota, denotando que lá no fundo do abismo pálido havia uma alma que partilhava da dor do mundo. Como em flashbacks dolorosos, o rapaz experimenta em seu ser memórias distantes de quando ele tinha a idade daquela garotinha. Lembrou de como em momentos de chuva não conseguia distinguir o que eram lágrimas do que eram gotas da chuva que, ora refrescava da poluição latente, ora castigava com resquicios àcidos. Por conta de suas deformidades viveu se esgueirando pelos becos e lugares escuros da cidade. Naquela época, já disputava um local para sobreviver enfrentando diariamente criaturas que pareciam ter saído de pesadelos, soldados armados da Ordem, jornalistas sensacionalistas (sim, a mídia ainda existe) e pessoas que não entendiam e não aceitavam que a radiação e as condições climáticas haviam deformado algumas pessoas. Viveu até ali como um animal, isolado, se libertando somente nas noites densas, onde seu bater de asas se juntava aos outros barulhos aterradores e misteriosos que se espalhavam pela noite. Aquela garotinha frágil estava aos prantos. Perder a mãe poderia ser demais para alguns e em tempos como esses, um pilar familiar pode ser tudo que uma pessoa pode ter. O herói das sombras nunca tivera mãe. Fora criado nas sombras e somente teve a ajuda de uma pessoa, que já havia partido também. Essa lembrança era dolorosa e ele afastou de sua cabeça naquele momento. – Mamãe... Era hora dos dois sairem dali. Ele sabia que poderiam surgir outras criaturas, ou coisas piores e enfrentá-los na chuva era cansativo e desnecessário, então segurou a garota pelo braço: – Temos que ir garota. – Me largue... Não vou deixar minha mãe aqui.... - parou abruptamente antes de concluir a frase. - ... pra ser devorada por essas criaturas! Preciso enterrá-la. O jovem de olhos brancos entendia a angustia da garota e sem dizer nada segurou o corpo de Selena nos braços e fez sinal para que a garota subisse em seus ombros. Vivian subiu e então o salvador alado ergueu suas asas negras e alçou voo. Entre as nuvens poluídas eles voaram. Vivian pode ver a cidade lá embaixo, cuspindo fumaça de seus prédios decadentes. Bem longe pode enxergar um lugar mais tranquilo e julgou que lá seriam as terras dos Afortunados. Secretamente, ela sonhava fugir pra lá e poder viver segura, mesmo que tivesse que trabalhar muito, afinal, qualquer lugar seria melhor do que as cidades grandes. Enfim pousaram em uma area que beirava a entrada da floresta que dava para os limites com a terra dos Afortunados. – Vamos enterrá-la aqui. - disse a criatura. Vivian não disse nada, apenas consentiu com a cabeça. O homem então se abaixou e começou a cavar com as próprias mãos rapidamente. Em pouco mais de vinte minutos havia aberto uma cova que serviria bem para o corpo da mãe de Vivian. Colocou-a lá e cobriu com terra. Vivian colocou um pedaço de madeira fincado em cima da sepultura improvisada e ficou parada olhando para ele. – Quer escrever algo na madeira? - perguntou ele. – Não sei escrever... - respondeu tristemente a garota de cachos loiros. – Eu escrevo. Diga algo. “Selena, amada mãe assassinada por um pesadelo”. Essas foram as palavras que o rapaz esculpiou com suas longas garras na madeira. Os dois voaram de volta a cidade e o jovem protetor foi guiado pela garota até seu antigo lar, onde ele aterrissou com ela. – Não saia mais a noite. - advertiu o protetor. – Quem é você? - indagou a garota. – Sou apenas alguém... – Você é mais do que isso... - Vivian conseguiu sorrir por um momento. - Veio do nada, entre as chaminés e fumaça densa, surgiu com suas asas negras. - e tocando uma das asas dele: - Você é um Anjo... um “Anjo Industrial”! O Anjo sorriu e saiu voando. Vivian permaneceu olhando até que ele sumisse nas nuvens negras. Ela havia perdido sua mãe naquela noite e ganhado um protetor, um anjo que ela sabia estar lá fora em algum lugar. Havia esperança nos olhos da garota. Havia esperança em mundo devastado pela ganância e pelo ódio. Daquela noite em diante ela sabia que não estava mais sozinha. Sabia que algo grande aconteceria e que ela nunca mais seria a mesma. Eu soube dessa história algumas horas depois de ela ter acontecido, minha sobrinha Vivian era muito chegada a mim e quando fui buscá-la para leva-la comigo ela me contou tudo sobre minha irmã Selena. Nossas vidas estavam mudadas para sempre, pois jamais haviamos visto alguém lutar contra qualquer criatura. Havia um anjo na terra, um Anjo Industrial!
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